sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Grilhões invisíveis!



É comum ouvirmos, e eu ouvi muitas vezes em 30 anos, uma frase que dói na alma, tanto pela insensibilidade de seu conteúdo quanto pela ausência de conteúdo: “-Se não estiver satisfeito, a porta da rua é a serventia da casa!” Uma frase desprovida de qualquer resquício de camaradagem pelos anos de privação do convívio familiar, das noites sem dormir, dos Natais, Réveillons, Aniversários e Carnavais longe de nossos entes queridos. Nela não está presente a tensão que passamos nos serviços de guarda e segurança em locais sombrios de épocas sombrias e contra ideais sombrios. Nela não estão presentes os momentos de apreensão na atividade de controle do tráfego aéreo, onde sofremos pela segurança de pessoas que sequer conhecemos.
Essa frase tem sido utilizada com tanta freqüência que nos remete a comparar a nossa amada “Mãe Força Aérea”, com uma senhora casadoira, de muitos maridos que se renovam a cada novo comando. E nós? Bem, nós somos aqueles enteados indesejáveis, que por falta de laços de sangue não almejam o mínimo afeto do pai, tampouco mera consideração.
Acima de tudo, com alguma mágoa e uma pitada de frustração, mas despido de qualquer rebeldia, procuro focar minha preocupação no “Fator Humano” da atividade ATC, onde, apesar do questionável cenário, tive a sorte de desfrutar de uma carreira profícua, digna, útil e prazerosa. Tendo esse sentimento como ponto de partida, ousei escrever o texto a seguir. Espero que apreciem.

Grilhões invisíveis!
Assim contava minha saudosa avó:
- “Eu era menina ainda. Devia ter uns 10 anos. A abolição da escravatura havia sido recém proclamada, mas muitos negros, por falta de trabalho remunerado, optavam por manter-se naquela condição desumana e continuavam a trabalhar em troca de pão e água sob o teto das velhas senzalas de portas abertas. Ir embora para onde? Quem daria emprego a um negro? Aqueles que alimentavam o espírito da liberdade definhavam-se pelas esquinas da cidade, doentes e famintos. Outros se aventuravam a caminhar sem rumo, em trajes rotos, esfarrapados pelo tempo, expostos às intempéries. Tornaram-se andarilhos em busca de um quilombo que os acolhesse. Pois acredite meu neto, os Senhores da Terra importavam mão de obra branca do estrangeiro para o trabalho no campo, só para não dar emprego remunerado aos seus ex-escravos. Pobres negros!”

Hoje noto que há uma parecença dessa triste estória com a segregada situação do controlador militar de tráfego aéreo. Quem se atreveria a deixar a FAB para buscar um lugar na Infraero? Quem se sujeitaria a prestar um novo concurso, realizar novamente um desconcertante curso de “formação” no ICEA, ministrado por seus pares, quem sabe até por seus ex-alunos, para reabilitar-se como controlador civil? Pois é, de outra forma ninguém dará emprego no ATC civil a um controlador militar alforriado. Alguns desses libertos têm buscado a sorte em outras áreas, tentando adaptar-se às atividades com as quais nunca tiveram contato. Outros continuam na “caserna de portas abertas”, mas agrilhoados pela escassez de novas oportunidades e sujeitos à chibata regulamentar calibrada à sua condição subalterna. Alguns poucos anciões, beneficiários da lei dos “quase sexagenários”, foram chamados de volta, mediante o estipêndio de uma cota extra de ração, para forjar os jovens no servilismo e no trabalho resignado. De outro lado, os afortunados ex-escravos de canela fina ou de meio-sangue azul, serviçais da Casa Grande, contam com a abastança de um salvo conduto de uma lei especial que os protege. Uma parte deles aninha-se na aviação civil sem precisar de qualquer análise comprobatória de competência, muito menos repetir o curso de formação. A outra parte se refestela com cargos na “Corte” para desempenhar em estatais o único papel que sempre fizeram com maestria, o de feitor.
Pobre controlador militar de pé rachado e sangue plebeu. Não tem sequer o direito de sonhar com a mesma sorte. Nem expressar suas vontades, nem seus ideais, sob o risco de ter em seu encalço um “capitão do mato”, que o levará a ferros ao julgo desse descabido “apartheid hierárquico”. O que conforta é que, para esses casos, sempre haverá uma comunidade quilombola por perto, falando a mesma língua, sofrendo dos mesmos males, lutando pelas mesmas causas e buscando pela mesma justiça. Elas sobrevivem precariamente de doações, de uma mísera gota de suor se comparável à despendida em bicas na árdua labuta do ATC. Contribuir para sua subsistência tornou-se a única maneira de garantir que nos momentos mais difíceis, a “peça” não estará sozinha.
Modelos internacionais de integração dessa chamada “sub-raça”, que foram aplicados em países mais desenvolvidos, chegam sorrateiramente para mostrar os resultados obtidos no estrangeiro e aguçar a sede pela igualdade que nos tranca a garganta. Como saber se isso será bom ou ruim, se os abolicionistas trabalham nos bastidores, a meia luz, com meias palavras, esquivando-se da fidalguia que insiste em persegui-los? Não há como saber. E por conta disso a frase “Aguarde e confie” continua sendo a única mensagem sussurrada na escuridão das senzalas.
Para finalizar, gostaria de justificar minhas prosaicas palavras, exortando os leitores ao pensamento do audaz Patrono da Força Aérea Brasileira, o emérito Brigadeiro Eduardo Gomes. Ele sim, demonstrando refinado espírito militar de corpo, um dia assim se expressou:

“- A hierarquia existe para definir níveis de decisão e nunca para afastar aqueles que vivem sob o mesmo juramento”.

O que mais dói não é cicatriz no tornozelo. O que dói de verdade é que, apesar do grilhão de ferro ter sido removido, a gente continua sentindo que ele ainda está ali.

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