Para aqueles que acham que minha história a serviço do Controle de Tráfego Aéreo Brasileiro se restringe às salas de controle, às missões no ICEA a devorar as publicações aeronáuticas de uma aviação civil (hoje não mais), conto aqui resumidamente uma pequena passagem, entre muitas semelhantes, que um dia, se a saúde me permitir, as contarei de cabo a rabo.
---------------------------------------------------Agosto de 2004. O valente monomotor da FAB, depois de uma viagem angustiante sobre a densa floresta amazônica, circula glissando a pequena cidade, identifica a pista, enquadra e pousa. Voando desde a véspera, quando saímos de Manaus, finalmente chegamos a São Félix do Xingu. É o fim do mundo. Olhei no mapa e vi desenhado o fim de uma linha. Uma longa e precária estrada de terra terminava ali. Em meio à bruma e o sufocante cheiro de madeira queimada, silhuetas começavam a tomar forma e a revelar a aproximação de pessoas em bicicletas, a cavalo, de todos os cantos, rodeando o avião em busca de novidades. Com certeza aquele era o tempero que ajudava aquela gente a digerir a monotonia que brevemente eu iria experimentar.
Cumprimentos e sorrisos com poucos dentes nos rodeavam enquanto descarregávamos o Cessna. Logo percebi pelas perguntas que se tratavam de velhos amigos da FAB, a procura de notícias daqueles que um dia passaram por ali, do rol de pessoas que a partir de então eu também faria parte.
Algo me chamou a atenção cerca de uns cem metros da aeronave. Cavaletes e fitas zebradas protegiam seis sacos negros, de plástico, com cerca de dois metros cada um, que jaziam estufados sob o sol escaldante. Meu olhar não conseguiu esconder a imensa curiosidade e arrancou respostas espontâneas dos que estavam próximos:
- “São X-9” da motosserra. Houve uma ação conjunta aqui da Policia Federal, IBAMA, Ministério do Trabalho, Ministério Público e da Aeronáutica, para libertar escravos das madeireiras, mas bastou eles irem embora e começou “o pega pra capar”. Aqueles que falaram demais... estão ai há dois dias esperando um legista de Marabá. Credo em cruz!
Aonde eu vim parar, pensei. Se essa é primeira impressão, o que esperar de agora em diante?
Na semana seguinte, ambientado e no ritmo que a localidade exigia, fui surpreendido pelo alarme do portão acusando a presença de alguém ou alguma coisa. Seriam vacas novamente? Olhei pela câmera interna e lá estava um homem em trapos. Magro, sujo e com um chapéu apertado ao peito como se suplicasse um instante de atenção.
- Bom dia!
- Dia! O senhor pode me dar um dedo de prosa?
- Não tenho muito tempo, mas diga.
- Ai é da Aeronáutica né? Venho de uma derrubada no Iriri. Soube que vocês estão salvando quem estava no trabalho escravo. Eu to jurado de morte e preciso ir embora.
- Olhe meu amigo, a missão acabou há duas semanas e...
- Não me diga isso homem ... eu vou morrer... estou viajando pelo mato tem um mês... quero voltar para o meu Mato Grosso... veja o que a malária fez comigo... daqui a pouco começa a terçã de novo... estou dormindo no mato, não posso ir para a cidade... os “gatos” me pegam... ah meu Jesus amado... cheguei tarde então... o que eu faço?
Enquanto ele resmungava um grande e triste monólogo com os olhos fixos no chão, lembrei das mortalhas negras estufadas ao sol. Minha garganta se fechou e nada pude dizer para consolar seu pranto. Senti que deveria ser forte o suficiente para resistir àquela situação sem fraquejar na frente de alguém que me considerava sua última esperança de vida. E assim resisti.
- Onde você está dormindo? – Perguntei.
- Na beira do rio Fresco. Lá ainda tenho peixe para comer sem tempero.
- Volte aqui amanhã, nesse mesmo horário. Verei o que posso fazer por você.
Andando sem dar as costas, olhando por sobre os ombros completou:
- Tenho medo, mas acho que o senhor é gente de bem. Eu volto.
No dia seguinte, no horário combinado não deu as caras. Vasculhei os arredores do sítio com as câmeras e de repente, lá estava ele, amoitado num arbusto de pau torto, tremendo com a febre da malvada terçã. Acho que na verdade ele não se afastara dali desde o dia anterior por sentir-se mais seguro ao lado do sítio.
- Dê a volta! Precisamos conversar. Tenho algo para você.
Depois de muita demora, lá estava ele no portão.
- Escute, falei com um amigo da polícia...
- Deus me defenda! Não diga isso homem! Eles me matam!
- Calma! Eu percebi que não estaria seguro se pedisse ajuda a eles, então nada disse sobre você. Soube que em Marabá há um escritório da Polícia Federal que ainda está tratando desse assunto, e é para lá que você vai. Vá procurá-los e não diga que está fugindo ou jurado de morte. Diga apenas que ficou sem serviço e precisa voltar para casa e não tem dinheiro nem documentos, entendeu? Diga que entendeu!
- Certo, mas de que jeito? Dois dias e meio de ônibus... é caro... não tenho um centavo...
- Tome esta sacola! Tem como pegar o ônibus na estrada sem correr risco?
- Com esses trapos, não. O motorista nem pára.
- Ai tem uma muda de roupa, um lanche, água e R$ 50,00. Tem também um pouco de quinino e sulfato para você controlar a febre. Isso não tem relação com a Aeronáutica. Não complique as coisas. Deus te acompanhe! E olhe aqui! Não diga a ninguém que eu te ajudei, pois não quero fila de gente aqui na porta, entendeu? Diga se entendeu!
- Sim, mas homem, como vou lhe pagar isso? Quando tiver o dinheiro como faço para lhe devolver?
- Quando você tiver o dinheiro para me pagar, compre ferramentas para você e diga a seus amigos: “Isso foi presente de um paulista”.
- Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! Exclamou.
Virei nos cascos e segui sem olhar para traz completando com a voz embargada... E para sempre Seja Louvado!
Entrei na sala de vigilância, selecionei a câmera e ele já não estava mais lá. Que Deus o tenha com saúde e paz, onde quer que esteja.
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Deixo aqui um forte abraço aos meus parceiros de equipe, sargentos Macedo, Marcelo e Dionísio que cônscios de suas responsabilidades, lutaram para manter a operacionalidade do RADAR, das frequências de rádio VHF e das estações de captação de dados meteorológicos no coração da Amazônia. É exatamente para lá onde os “especialistas em aviação e fofoqueiros de aeroportos” apontam para a existência de buraco negro, sem o mínimo conhecimento de quão difícil é manter as estações em funcionamento. São essas localidades remotas que sustentam o imenso sistema de controle do espaço aéreo brasileiro.
Amo a corporação que servi por mais de 30 anos. Mas o meu conflito interno entre carreira (militar) e profissão (ATCO), dá-se no momento que a carreira nega a existência de degradação e dispensa procedimentos defensivos válidos para não deixar transparecer a falha. Ao fazer isso, inibe a adoção de medidas necessárias à segurança no espaço aéreo.
Celso BigDog
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