sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Ver, sentir e calar!



Era sexta-feira, 26 de maio de 2000. Na sala de estar somente a figura do Renato Santos à paisana. Era o dia de seu aniversário e após as 22 horas iríamos comemorarmos no primeiro boteco de portas abertas que encontrássemos. Devorando alguns textos de Kafka, vez por outra adentrava à sala do APP para dividir conosco seu prazer: “Escuta isso Cachorrão...” Lia e buscava no fundo dos olhos do ouvinte a resposta de sempre: “Será que esse imbecil entendeu?” E por muitas vezes repetiu o ato, girando em seguida nos cascos para acomodar-se novamente nos surrados sofás da salinha. Ah Tigrão, não esquecerei jamais quando você redigiu um texto endereçado aos supervisores do APP e eu o questionei: “Esse texto está muito complexo. Os supervisores terão que consultar um dicionário para entendê-lo.” Depois de entortar a boca, entregou-me a folha novamente e pediu com educação: “Por favor, emburreça o texto para mim.”
Enfim chegamos ao turno das 20h. As posições operacionais estavam ocupadas com o material humano que dispúnhamos. Na minha função de chefe de equipe escalei os melhores operadores para os setores mais congestionados, como era usual. Por falta de controladores habilitados acomodei-me numa das mais movimentadas posições operacionais do APP SP, o “Final Congonhas”. O movimento se avolumava tanto que procurava, além de dar conta do meu tráfego, orientar os dois supervisores que corriam pela sala alinhavando os aviões dos três setores que estavam sendo seqüenciados para pouso, coordenando as decolagens e agilizando a saída da terminal. Quanto menos tempo um avião permanecesse no solo de Congonhas ou Guarulhos, melhor seria para o fluxo de tráfego, sem esperas no solo e sem órbitas em vôo. As freqüências de rádio, como sempre, apresentavam interferências das mais diversas, mas o que fazer se não havia reservas. Os alvos duplicados, triplicados e multiplicados dos aviões na tela do X-4000 aumentavam a sensação de que não iríamos dar conta do recado. Na cabeça um só pensamento “-será que vai ser comigo?” Pedi à Torre Congonhas que procurasse usar as duas pistas, pois reduzi de cinco para três milhas náuticas a separação entre aviões diante de uma grande demanda de tráfego que se aproximava. Apesar de solicitar aos Centros Brasília e Curitiba que realizassem um controle de fluxo, já sabia que isso era quase impossível. Essa solicitação gerava um efeito negativo na produtividade, pois os aviões mantidos “presos” juntos aos Centros de Controle reduziam sua capacidade de aceitar os tráfegos saindo da terminal e criava um circulo vicioso, onde o avião, tripulantes e passageiros eram as grandes vítimas. Mas aquele dia iria marcar minha vida, que já apresentava muitas seqüelas do trabalho, no corpo magro e curvado, triste e sem esperanças. Não havia tempo sequer para pensar na minha família que meses antes havia se desfeito pela minha intolerância, amargura e cansaço. Eu estava no fundo do poço e não sabia.
Como disse no início, naquela sexta-feira, 26 de maio, às oito horas da noite, um silêncio tétrico repentinamente tomou conta da sala. Olhares incrédulos se cruzaram das oito posições operacionais ativadas e um gemido uníssono ecoou na sala: “- Caiu a freqüência!” - Mas meu Deus, caíram todas? De uma vez? Levantei-me da cadeira e busquei o único equipamento variável reserva que ficava no fundo da sala. Deparei-me com um aglomerado de controladores que se acotovelavam em busca de uma chance para falar com seus aviões. Que triste constatação: “-Não havia microfone!” Pedi que os supervisores ligassem para os demais órgãos para que reassumissem nosso tráfego, mas os telefones também estavam mudos. Aquele sistema SITTI de comunicação que eu tanto reneguei, mostrava-se pior do que eu poderia imaginar. Ficamos vinte e dois minutos com os olhos estatelados nas telas do radar, incrédulos e impotentes diante de um filme de terror. Quase bateram quatro aviões, dois sobre Santana do Parnaíba e dois sobre Bonsucesso em Guarulhos. Naquele momento senti um forte cheiro de sangue vindo das entranhas do cérebro, mas não fluiu no meu nariz. Minhas mãos suavam frias, estavam escorregadias que mal podia firmar a caneta para anotar as providências. Suspirei por várias vezes e buscando manter a voz serena comecei pouco a pouco a retomar a consciência. Enquanto confortava os colegas, rezava. Deles recebi elogios pela maneira calma com que reorganizei o serviço. As 23:00h, após anotar as alterações no Livro de Registro de Ocorrências, desci as escadas, entrei no carro, fechei a porta e chorei como uma criança. Fui para casa e esqueci até mesmo da comemoração do aniversário do meu melhor amigo.
Minha vida nunca mais seria a mesma e decidi que enquanto participasse daquele circo de horrores, haveria sempre de registrar e relatar tudo, buscando soluções, se necessário, nos altos escalões da Força Aérea. E assim o fiz através das prerrogativas que o CENIPA me confiou como TSCEA - Técnico de Segurança do Controle do Espaço Aéreo. Vivenciei outras incontáveis estórias parecidas, indizíveis, de um sofrimento tão exótico que nenhum outro ser humano jamais entenderá.

Por favor, contem essa história para os incrédulos, os insensatos, os preconceituosos contra militares, os preconceituosos contra civis e para aqueles que afirmam que nós, os controladores, somos os anjos que perderam a inocência.

Hoje estou recolhido na reserva. Diante da proposta de voltar ao convívio do tráfego aéreo, consultei minha família, reconquistada com a Graça de Deus, e a resposta que tive foram lágrimas que vi brotar dos olhos de minha esposa.
Chega!
Acho que o grito de socorro daquele dia 26 de maio, só agora conseguiu sair da minha garganta.

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