Emergindo dos lençóis saltei assustado da cama. As luzes foram acesas de uma só vez, e de assalto uma inesperada incursão rompeu o silêncio. Os ponteiros do relógio na entrada do imenso alojamento coletivo marcavam duas e meia da madrugada. Acompanhado de dois soldados armados de fuzis, gritou histericamente o tenente aos pés de minha cama:
- Você é o Rodrigues? Levanta! Você está preso! Tem três minutos para vestir o décimo!
- Mas o que houve?
- Você deve saber muito bem o que houve! Vamos! Acelerado!
Os dois soldados se colocaram um de cada lado da cama e alternavam-se, hora olhando o jovem tenente como se esperassem dele uma ordem para atirar, hora medindo-me dos pés à cabeça como um gesto explícito de desprezo. Pude sentir o cheiro do óleo lubrificante dos fuzis que roçavam na cama impregnando o lençol. Meus vizinhos de leito, vergonhosamente, apesar do estardalhaço, fingiam dormir um sono profundo, simplesmente para não compartilharem aquele momento humilhante e indigno.
Tentei ainda questionar, mas diante da ausência de respostas, pus-me a vestir o décimo uniforme de brim azul barateia, característico do pessoal de serviço e dos presos. Enquanto abotoava os incontáveis botões da gandola, perguntava a cada um deles, um por um: - Por quê? Mas nem mesmo os meus botões que compartilhavam da minha mais íntima consciência sabiam o que me responder. Calcei o borzeguim, passei um pente no cabelo e segui rumo à porta do alojamento escoltado pelos soldados. Ao sair, não podia imaginar que um movimento tão grande de pessoas pudesse ser encontrado nas alamedas da Academia àquela hora da manhã. O burburinho de vozes e vultos misturados à zoada de sapos e grilos, contrastavam com a cadência de nossos passos mudos. Seguimos a pé para as antigas instalações próximas ao portão norte, que ficava do lado oposto à Lagoa Sucuri. Aqueles velhos e descascados galpões, surrados pelo tempo, perfilavam-se lado a lado, mal iluminados e rodeados por velhas e frondosas mangueiras. Uma névoa rasteira se encarregava de dar à madrugada uma aparência suspeita, soturna, assustadora. Quando passava por mais uma das imensas portas, o tenente que andava nos meus calcanhares disse: - é aqui! Olhei para o alto e pude ler: S.I.J. – Seção de Investigação e Justiça. Adiantando-se, girou a maçaneta e abriu a porta revelando que algo de muito ruim estava à minha espera lá dentro. Choro, gritos e gemidos contaminavam o ambiente. Um sargento da 2ª Seção foi a primeira pessoa a me receber. Sob um imenso bigode, sua boca que parecia ter somente o lábio inferior resmungou:
“– Olha lá novinho, para facilitar o trabalho é melhor você dizer logo tudo que sabe, senão...” Não esperei que ele terminasse a frase e o interrompi com um sonoro “- ô fulano, vai tomar no seu...!” Um violento empurrão colocou-me de vez dentro do recinto. Atravessamo-lo apressadamente de ponta a ponta, chegando ao quintal do lado oposto, nos fundos, também repleto de mangueiras. A porta propositalmente entreaberta me permitia assistir a uma cena grotesca. Rodeado por sarcásticos “irmãos de farda” excitados como uma alcatéia, lá estava um homem de peito desnudo, chorando como criança, pendurado pelos pés, atado ao galho de uma das árvores com seu próprio cinto de lona. Chorava copiosamente enquanto repetia entre soluços:
“- Eu não sei, por favor, quero sair daqui! Minha cabeça está doendo muito!”
Ao se certificarem de que eu já havia visto o bastante, meus novos inquiridores, um tenente e um capitão, que eu nem os vi chegar, fecharam a porta e começaram seu trabalho...
- “Pois é sargento Rodrigues... – só tem um ano de formado! Sabe por que está aqui, não? Há quanto tempo vem usando desse expediente? Quem mais está envolvido nisso. Nós arrombamos seu carro e drenamos gasolina. Por que o seu carro estava com o motor quente quando a patrulha chegou? Há quanto tempo isso vem sendo feito. Por que a sua gasolina é igual à do Beltrano? Por que seu carro não estava no estacionamento do alojamento e sim no do hangar? Você já ouviu alguém dizer que usou gasolina de avião no carro? Essa garrafa de Coca-cola (meio litro) tem gasolina do seu carro.”
Diante do teor e o tom da conversa, ficou evidente que eu acabara de entrar na fila para aquele interrogatório ao estilo morcego, mas uma coisa estava decidida em meu pensamento: “Só conseguiriam me pendurar ali se eu estivesse morto!”
Fui achincalhado, humilhado, caluniado e ameaçado com um cassetete de borracha que passou várias vezes roçando minha orelha para explodir em uma velha escrivaninha. Depois de alguns golpes, farpas e serragem de cupins começaram a cair sobre minhas pernas. Sentado já era possível ver o piso através de um grande buraco que se formou no tampo. No entra e sai de interrogadores, alternadamente, alguns mais “camaradas” paternalmente diziam para que eu confessasse logo, pois quem assumisse o erro receberia um tratamento diferenciado. Na minha verde ingenuidade, se soubesse realmente de algo, teria confessado.
Certa manhã adentrou àquele embolorado recinto um oficial, a quem servi como aluno na Escola de Especialistas de Aeronáutica em 1975. Fiquei muito contente ao vê-lo e fui ao seu encontro:
“- Bom dia capitão, o senhor ainda se lembra de mim? Da 16ª Esquadrilha em Guará?”
“– Cale-se! Quem faz perguntas aqui sou eu! Você me faz sentir um fracassado. Como não percebi a tempo de impedir que um ladrão se tornasse um sargento da Força Aérea?
Pior do que cair nas garras do inimigo é ser fustigado pelos próprios irmãos, sem direitos, sem defesa ou qualquer contato externo. Quinze dias de privações passei entre quatro paredes de um cômodo sem janelas, até que chegassem à óbvia conclusão da minha completa inocência.
Das dezenas de envolvidos no IPM, muitos foram expulsos ou licenciados à bem da disciplina. Todos foram severa e oficialmente punidos, exceto eu. Eu fui inocentado. Fui até condecorado “oficiosamente” diante de todo o efetivo da AFA, numa formatura que já não me lembro em homenagem a que. A única recordação oficial que tenho é uma placa de prata com os dizeres; “Ao Controlador do ano de 1977 – Sgt. Rodrigues – Eficiência e Desempenho.” Essa condecoração visava tão somente minimizar os olhares maldosos que os pares lançavam sobre mim, sem a mínima intenção de tentar reparar o erro irreparável. Meu chefe direto, um tenente especialista, em momento algum tentou interceder a meu favor. Acredito, no entanto que ele, dentro de sua insignificante autonomia, tenha sido o mentor daquela papagaiada de controlador padrão.
Absolutamente nada foi registrado em minhas alterações ou histórico, nem a inclusão descabida naquele IPM de roubo de combustível, nem minha clausura, tampouco minha condecoração fajuta. Eu conservo a placa até hoje, como um lembrete, para jamais esquecer o que a Força é capaz de fazer com você, quando deveria estar fazendo por você.
Tempos depois aquele sargento que no dia da prisão recebeu-me na entrada da S.I.J. arriscou-se a falar comigo. Quando notou minha repulsa, antes que eu o repelisse com a mesma frase de outrora, o sujeito vestiu o “bibico” e disse jocosamente: “- Aí meu camarada, aquele cara pendurado na árvore era um infante nosso. Estava só fazendo teatrinho para você.”
Olhei-o da cabeça aos pés e respirei fundo para desfazer o nó que se formou na minha garganta. Ele, como se tivesse adivinhando minha próxima reação, girou nos calcanhares e partiu.
Apesar do turbulento início de carreira, por falta de oportunidades, passei três décadas na caserna, incólume e sem sofrer qualquer punição, com muitos méritos e poucas honrarias, à mercê da conveniência dos regulamentos militares, dos caprichos de comandos, usurpado pelos governantes no direito e no desempenho do papel constitucional, sob a batuta de duas Cartas-Magnas distintas orquestrando governos de ideologias diversas, uns democráticos e outros não. Marchei garbosamente em desfiles grandiosos. A cada comando de “olhar à direita” podia observar a satisfação “orgásmica” estampada na face e nos olhos das autoridades, inebriadas pela sensação de poder que aqueles submissos e aplicados soldados lhes causavam ao ego.
Não há nada pior do que a servidão, mas minha inclinação para o controle de tráfego aéreo amenizou a crueza de suportar por tanto tempo a supremacia da força sobre a razão. Realizei com satisfação meu trabalho amparado em documentos e normas da administração de aviação civil internacional, muitas vezes dissonante e incompatível com os regulamentos castrenses. E assim sobrevivi à simbiose militar/ATC. Foi exatamente assim. História viva na minha lembrança, como se fosse ontem, como se fosse hoje, e acho que infelizmente, como será para sempre.
Mário Celso Rodrigues
Um Sub Consciente
- Você é o Rodrigues? Levanta! Você está preso! Tem três minutos para vestir o décimo!
- Mas o que houve?
- Você deve saber muito bem o que houve! Vamos! Acelerado!
Os dois soldados se colocaram um de cada lado da cama e alternavam-se, hora olhando o jovem tenente como se esperassem dele uma ordem para atirar, hora medindo-me dos pés à cabeça como um gesto explícito de desprezo. Pude sentir o cheiro do óleo lubrificante dos fuzis que roçavam na cama impregnando o lençol. Meus vizinhos de leito, vergonhosamente, apesar do estardalhaço, fingiam dormir um sono profundo, simplesmente para não compartilharem aquele momento humilhante e indigno.
Tentei ainda questionar, mas diante da ausência de respostas, pus-me a vestir o décimo uniforme de brim azul barateia, característico do pessoal de serviço e dos presos. Enquanto abotoava os incontáveis botões da gandola, perguntava a cada um deles, um por um: - Por quê? Mas nem mesmo os meus botões que compartilhavam da minha mais íntima consciência sabiam o que me responder. Calcei o borzeguim, passei um pente no cabelo e segui rumo à porta do alojamento escoltado pelos soldados. Ao sair, não podia imaginar que um movimento tão grande de pessoas pudesse ser encontrado nas alamedas da Academia àquela hora da manhã. O burburinho de vozes e vultos misturados à zoada de sapos e grilos, contrastavam com a cadência de nossos passos mudos. Seguimos a pé para as antigas instalações próximas ao portão norte, que ficava do lado oposto à Lagoa Sucuri. Aqueles velhos e descascados galpões, surrados pelo tempo, perfilavam-se lado a lado, mal iluminados e rodeados por velhas e frondosas mangueiras. Uma névoa rasteira se encarregava de dar à madrugada uma aparência suspeita, soturna, assustadora. Quando passava por mais uma das imensas portas, o tenente que andava nos meus calcanhares disse: - é aqui! Olhei para o alto e pude ler: S.I.J. – Seção de Investigação e Justiça. Adiantando-se, girou a maçaneta e abriu a porta revelando que algo de muito ruim estava à minha espera lá dentro. Choro, gritos e gemidos contaminavam o ambiente. Um sargento da 2ª Seção foi a primeira pessoa a me receber. Sob um imenso bigode, sua boca que parecia ter somente o lábio inferior resmungou:
“– Olha lá novinho, para facilitar o trabalho é melhor você dizer logo tudo que sabe, senão...” Não esperei que ele terminasse a frase e o interrompi com um sonoro “- ô fulano, vai tomar no seu...!” Um violento empurrão colocou-me de vez dentro do recinto. Atravessamo-lo apressadamente de ponta a ponta, chegando ao quintal do lado oposto, nos fundos, também repleto de mangueiras. A porta propositalmente entreaberta me permitia assistir a uma cena grotesca. Rodeado por sarcásticos “irmãos de farda” excitados como uma alcatéia, lá estava um homem de peito desnudo, chorando como criança, pendurado pelos pés, atado ao galho de uma das árvores com seu próprio cinto de lona. Chorava copiosamente enquanto repetia entre soluços:
“- Eu não sei, por favor, quero sair daqui! Minha cabeça está doendo muito!”
Ao se certificarem de que eu já havia visto o bastante, meus novos inquiridores, um tenente e um capitão, que eu nem os vi chegar, fecharam a porta e começaram seu trabalho...
- “Pois é sargento Rodrigues... – só tem um ano de formado! Sabe por que está aqui, não? Há quanto tempo vem usando desse expediente? Quem mais está envolvido nisso. Nós arrombamos seu carro e drenamos gasolina. Por que o seu carro estava com o motor quente quando a patrulha chegou? Há quanto tempo isso vem sendo feito. Por que a sua gasolina é igual à do Beltrano? Por que seu carro não estava no estacionamento do alojamento e sim no do hangar? Você já ouviu alguém dizer que usou gasolina de avião no carro? Essa garrafa de Coca-cola (meio litro) tem gasolina do seu carro.”
Diante do teor e o tom da conversa, ficou evidente que eu acabara de entrar na fila para aquele interrogatório ao estilo morcego, mas uma coisa estava decidida em meu pensamento: “Só conseguiriam me pendurar ali se eu estivesse morto!”
Fui achincalhado, humilhado, caluniado e ameaçado com um cassetete de borracha que passou várias vezes roçando minha orelha para explodir em uma velha escrivaninha. Depois de alguns golpes, farpas e serragem de cupins começaram a cair sobre minhas pernas. Sentado já era possível ver o piso através de um grande buraco que se formou no tampo. No entra e sai de interrogadores, alternadamente, alguns mais “camaradas” paternalmente diziam para que eu confessasse logo, pois quem assumisse o erro receberia um tratamento diferenciado. Na minha verde ingenuidade, se soubesse realmente de algo, teria confessado.
Certa manhã adentrou àquele embolorado recinto um oficial, a quem servi como aluno na Escola de Especialistas de Aeronáutica em 1975. Fiquei muito contente ao vê-lo e fui ao seu encontro:
“- Bom dia capitão, o senhor ainda se lembra de mim? Da 16ª Esquadrilha em Guará?”
“– Cale-se! Quem faz perguntas aqui sou eu! Você me faz sentir um fracassado. Como não percebi a tempo de impedir que um ladrão se tornasse um sargento da Força Aérea?
Pior do que cair nas garras do inimigo é ser fustigado pelos próprios irmãos, sem direitos, sem defesa ou qualquer contato externo. Quinze dias de privações passei entre quatro paredes de um cômodo sem janelas, até que chegassem à óbvia conclusão da minha completa inocência.
Das dezenas de envolvidos no IPM, muitos foram expulsos ou licenciados à bem da disciplina. Todos foram severa e oficialmente punidos, exceto eu. Eu fui inocentado. Fui até condecorado “oficiosamente” diante de todo o efetivo da AFA, numa formatura que já não me lembro em homenagem a que. A única recordação oficial que tenho é uma placa de prata com os dizeres; “Ao Controlador do ano de 1977 – Sgt. Rodrigues – Eficiência e Desempenho.” Essa condecoração visava tão somente minimizar os olhares maldosos que os pares lançavam sobre mim, sem a mínima intenção de tentar reparar o erro irreparável. Meu chefe direto, um tenente especialista, em momento algum tentou interceder a meu favor. Acredito, no entanto que ele, dentro de sua insignificante autonomia, tenha sido o mentor daquela papagaiada de controlador padrão.
Absolutamente nada foi registrado em minhas alterações ou histórico, nem a inclusão descabida naquele IPM de roubo de combustível, nem minha clausura, tampouco minha condecoração fajuta. Eu conservo a placa até hoje, como um lembrete, para jamais esquecer o que a Força é capaz de fazer com você, quando deveria estar fazendo por você.
Tempos depois aquele sargento que no dia da prisão recebeu-me na entrada da S.I.J. arriscou-se a falar comigo. Quando notou minha repulsa, antes que eu o repelisse com a mesma frase de outrora, o sujeito vestiu o “bibico” e disse jocosamente: “- Aí meu camarada, aquele cara pendurado na árvore era um infante nosso. Estava só fazendo teatrinho para você.”
Olhei-o da cabeça aos pés e respirei fundo para desfazer o nó que se formou na minha garganta. Ele, como se tivesse adivinhando minha próxima reação, girou nos calcanhares e partiu.
Apesar do turbulento início de carreira, por falta de oportunidades, passei três décadas na caserna, incólume e sem sofrer qualquer punição, com muitos méritos e poucas honrarias, à mercê da conveniência dos regulamentos militares, dos caprichos de comandos, usurpado pelos governantes no direito e no desempenho do papel constitucional, sob a batuta de duas Cartas-Magnas distintas orquestrando governos de ideologias diversas, uns democráticos e outros não. Marchei garbosamente em desfiles grandiosos. A cada comando de “olhar à direita” podia observar a satisfação “orgásmica” estampada na face e nos olhos das autoridades, inebriadas pela sensação de poder que aqueles submissos e aplicados soldados lhes causavam ao ego.
Não há nada pior do que a servidão, mas minha inclinação para o controle de tráfego aéreo amenizou a crueza de suportar por tanto tempo a supremacia da força sobre a razão. Realizei com satisfação meu trabalho amparado em documentos e normas da administração de aviação civil internacional, muitas vezes dissonante e incompatível com os regulamentos castrenses. E assim sobrevivi à simbiose militar/ATC. Foi exatamente assim. História viva na minha lembrança, como se fosse ontem, como se fosse hoje, e acho que infelizmente, como será para sempre.
Mário Celso Rodrigues
Um Sub Consciente
Uma declaração oficial!!! Grande abraço.
ResponderExcluirJá tinha ouvido este relato quando aí estive este mês te visitando. Lendo pausadamente e sorvendo a emoção com que escreveste vejo o grande sofrimento pelo qual passaste e tens que conviver por toda a tua vida. Um grande e saudoso abraço
ResponderExcluirAs marcar do que se foi, sempre farão partes dos sonhos que sempre teremos.
ResponderExcluirQuem bate, esquece...
Quem apanha, não.